Nós parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava morrendo, dizia tia Lydia, de um excesso de escolhas. (Pág. 37)
A República de Gilead é uma sociedade dividida em castas marcada pela anulação de todos os direitos do sexo feminino. Com a instituição de um governo autoritário e marcado pelo forte caráter religioso, as mulheres foram agrupadas de acordo com funções bem específicas, que, no geral, as reduzem à tarefa de proporcionar um aumento populacional para garantir o desenvolvimento e progresso do local. Em meio a Esposas, Marthas e outras categorias, uma Aia resolve narrar a sua história.
Offred é uma Aia, ou seja, uma mulher destinada exclusivamente à reprodução. Sempre cobertas da cabeça aos pés, utilizando um hábito vermelho, as integrantes desse grupo atendem às necessidades de uma família e após o parto, caso o bebê seja perfeito, são enviadas para outra casa, para dar continuidade à sua missão. Vista pelo restante da sociedade com desprezo, todas as noites Offred deita na cama e fica alternando os pensamentos entre os ensinamentos de Tia Lydia no Centro Vermelho, no período de preparação para aquilo que se tornaria o seu ofício, e lembranças da sua vida antes da instauração desse regime, algo que parece tão distante. Sozinha, a mulher começa a relatar um misto de memórias, acontecimentos antes e depois de se tornar uma Aia.
Como sabiam os arquitetos de Gilead, para instituir um sistema totalitarista eficaz ou, de fato, qualquer sistema, seja lá qual for, é preciso que se ofereça alguns benefícios e liberdades, pelo menos para uns poucos privilegiados, em troca daqueles que se retira. (Pág. 362)
Num futuro distópico, os Estados Unidos foram substituídos por uma "república" denominada Gilead. Nessa nova sociedade, as mulheres perderam todos os seus direitos e, através de preceitos religiosos, foram separadas em castas, cada uma responsável por uma função. As três principais são Esposas, Marthas e Aias, sendo essa última talvez a mais importante e, apesar disso, vista com desprezo, pois é encarregada da procriação, algo que está totalmente dissociado de prazer, sentimento que praticamente não existe no local.
A premissa de uma comunidade em que as mulheres são utilizadas apenas para a reprodução sempre me deixou bastante curiosa e a leitura desse livro me fez perceber que isso, que já é situação de alguns países, infelizmente reflete uma possível realidade no contexto mundial atual. Em pleno século XXI, a condição da mulher na sociedade ainda é uma questão e ainda representa uma luta diária, vista por muitos como vitimismo ou um posicionamento femista. Em O Conto da Aia, a autora dá vários tapas na cara do leitor ao mostrar que essa distopia pode facilmente se estabelecer em um futuro não tão distante.
O livro é narrado pela própria protagonista, a Offred, que várias vezes comenta sobre o seu antigo nome, mas não o menciona em momento algum. Antes da imposição desse novo governo, a personagem trabalhava e tinha uma família. A partir do momento em que ela foi convocada pela nova "república", aqueles que amava foram excluídos da sua vida. Tudo o que lhe resta deles são lembranças e é por essa razão que ela decide contar sua história: preservar a imagem da sua mãe, seu marido, sua filha e sua melhor amiga e criar uma companhia, o interlocutor, para as suas noites longe das obrigações. Por consistir numa espécie de conjunto de memórias, a Offred mistura acontecimentos atuais, digamos assim, com lembranças do período anterior a Gilead, o que torna a narrativa um tanto confusa, principalmente no início. Além disso, o ritmo é bastante quebrado por conta dessa alternância.
O Conto da Aia é uma obra bastante densa e que te proporciona reflexões durante todo o desenvolvimento. Como já mencionei, nessa nova sociedade existe uma classe de mulheres utilizada especificamente para a reprodução e esse fator não é somente uma ideia social, mas algo muito mais técnico. Não irei dar spoilers, mas há uma cena em que o procedimento feito com as Aias é descrito com detalhes e é uma prática bem chocante, pois trata de algo muito sério para aquele universo. É difícil explicar, mas o ato sexual funciona como que por uma espécie de máquina (no caso, a mulher). Acredito que muitos dos que defendem a ideia de submissão do sexo feminino e de que as mulheres servem apenas para procriar ficariam impressionados, perplexos com essa cena e só depois perceberiam que é exatamente a representação da sua crença.
A narrativa escolhida pela Margaret Atwood para contar essa história combina bastante com os aspectos que ela resolveu abordar com mais intensidade. No entanto, além de confundir o leitor no começo e quebrar o ritmo da leitura, essa abordagem deixa um pouco de lado pontos importantes da construção da sociedade distópica. Por ter um narrador em primeira pessoa, o livro possui um caráter mais pessoal, de modo que o cenário político é retratado através dos seus efeitos na vida da protagonista, cumprindo o objetivo da autora, mas deixando o leitor com algumas perguntas que não são respondidas. Logo após o desfecho existe uma série de notas históricas, ponto do qual gostei bastante, mas ainda assim determinados aspectos não são apresentados de forma tão esclarecedora.
Uma característica da trama que é abordada de forma muito interessante é o caráter religioso. O paralelo feito entre uma dada citação bíblica e um dos princípios fundamentais dessa nova sociedade é incrível. A autora conseguiu explorar essa temática com bastante sutileza e eu gostei demais disso. Sem dúvidas esse foi apenas o primeiro livro que li da Margaret Atwood. A maneira como ela desenvolveu essa distopia e abordou questões tão importantes me deixou com muita vontade de ler outros de seus títulos e mais coisas do gênero. O Conto da Aia não é uma obra simples e fluida, mas vale muito a pena ser lida. Fica aqui a minha recomendação.
- O Conto da Aia deu origem à série The Handmaid's Tale produzida pela Hulu e lançada em abril deste ano.
Minha classificação para este livro é de ♥ 4/6- "Muito bom".