Nesse momento, ouviu-se uma risada ainda maior por parte de Greta e Anna e, quando Einar ia pedir-lhes que saíssem do ateliê para deixá-lo trocar de roupa em paz, Greta disse num tom de voz suave, cuidadoso e nada familiar: "Por que não chamamos você de Lili?"
Assisti a "A Garota Dinamarquesa" ano passado, antes do Oscar. Ou ano retrasado. Enfim, assisti e torci muito pelo meu mozão Eddie Redmayne e fiquei muito feliz pela conquista de Alicia Vikander com o Oscar de Melhor Atriz. Quando soube que havia um livro, claro, fiquei louca pra ler e procurei um bocado até que, esse mês, apenas, consegui lê-lo. E se o filme é maravilhoso, o livro te dá uma dimensão ainda maior e mais profunda de Lili e sua história enquanto pioneira trans. Mas antes de começar a dar minhas impressões sobre ambos, um pouquinho da história.
Lili Elbe foi uma das primeiras pessoas trans do mundo a passar por uma cirurgia de mudança ou afirmação de sexo ainda nos anos 1930. Antes disso, era conhecida como o pintor dinamarquês Einar Wegener, casado com Gerda (ou, como foi chamada no livro, Greta) Wegener, também pintora, que viveu ao seu lado durante toda a sua transição, até sua morte, em 1931, aos 48 anos, depois de uma cirurgia para transplante de útero. Gerda fez fama pintando quadros da moça no final dos anos 1920. O livro tem algumas diferenças com relação do filme e vou focar nelas. Mas vamos começar com o livro.
Gerda e Lili |
O livro é uma espécie de biografia ficcional, com dados retirados da biografia oficial de Lili, "Man into Woman", uma compilação de cartas, escritos e diários publicada depois de sua morte, mas com a maior parte da história romanceada. O autor usou de muita sensibilidade e delicadeza numa escrita comovente para contar a descoberta de Lili enquanto mulher trans, suas dúvidas, sua transição e também os pensamentos de Greta, seu passado e suas próprias lutas. Inclusive, no livro, vemos um apoio muito maior de Greta em relação a Lili, um encorajamento, desde o início. A personagem, que no livro é americana, é mostrada como uma mulher moderna, corajosa e cheia de atitude e seu modo natural de enxergar Lili é comovente, ainda mais quando você tem em mente que a história se passa nos anos 1920 onde não era normal um homem se sentir uma mulher, quando não se falava em transgênero, nem existia esse termo. Vemos também mais de sua vida anterior, sua família da Califórnia, seu irmão gêmeo, Carlisle, que também foi de suma importância na transição de Lili, seu falecido marido, Teddy, etc. Sentimos o que ela sentia durante aqueles anos difíceis em que perdia seu marido e ganhava uma amiga, ao mesmo tempo em que ganhava, também, inspiração e fazia fama com seus quadros de Lili.
Quadros reais de Gerda Wegener sobre Lili |
No filme, Redmayne nos dá uma interpretação visceral de Lili e Einar. Chega a ser assustadora a sua mudança de um personagem para o outro e a transição entre eles; a descoberta, as dúvidas, o medo, a felicidade... Eu me apaixonei pelo Eddie nesse filme, foi aí que virei fã dele, antes mesmo de assistir ao filme que rendeu a ele o Oscar, "A Teoria de Tudo". Se 2016 não tivesse sido o ano de Leonardo DiCaprio, ele teria levado o Oscar de Melhor Ator pra casa de lavada. A mudança na postura dos personagens, no olhar, mas ao mesmo tempo ainda com a mesma timidez é uma representação perfeita da mudança ocorrida com Lili no livro, que viu nascer uma mocinha de vinte e poucos anos de dentro de um homem de mais de trinta, tanto no comportamento e atitudes quanto na aparência (mesmo que no filme ela seja maior do que Gerda; no livro Greta é maior e mais corpulenta enquanto Lili é pequena e super delicada). Alicia Vikander também faz um trabalho excelente entregando uma Gerda perdida, desesperada, sem chão, sem saber o que significa a situação de seu marido, negando a verdade, pensando ainda se tratar do jogo do início onde elas acharam divertido vesti-lo de mulher pra ir a uma festa. Também ao contrário do livro, onde ela começa a chamá-lo de Lili até mesmo sem querer antes que ele se descubra uma mulher.
Eddie e Alicia no filme |
Eu sempre recomendava o filme quando o assunto era pessoas transgênero ou transsexuais, mas agora que li o livro, recomendo os dois. No filme temos o quadro todo, pois apesar das mudanças ficou perfeitamente adaptado, com todas as informações principais e vitais mantidas e bem aprofundadas. Mas no livro vemos a profundidade dos pensamentos e sentimentos de Lili, o modo como ela se via, como ela via Einar, como uma segunda pessoa (até mesmo as memórias dele ela esquecia; quando Lili aparecia ela se esquecia das coisas que Einar tinha falado, e vice versa), a dor que sentia quando se via como duas pessoas diferentes vivendo no mesmo corpo, a raiva que tinha de seu corpo masculino e seu modo natural de ver os homens (Lili não era homossexual, lembrem-se, ela era uma mulher trans, logo, era hétero e não se via como gay). É fácil, diante da escrita sensível e impecável de Ebershoff, sentir o desespero de Einar ao colocar um prazo para lidar com sua situação, ao fim do qual se mataria se não conseguisse e sua felicidade ao finalmente se tornar a mulher que era graças a uma cirurgia pioneira e perigosa. É fácil, também, se colocar no lugar de Greta, da pessoa que está ao lado de uma pessoa trans, com suas perdas e danos, suas dificuldades de aceitação e de seguir a vida depois da mudança final, perdendo Einar e prestes a perder também Lili, que ia viver sua própria vida (numa sociedade conservadora como a da época, Greta acabou por tornar-se viúva pela segunda vez: segundo os registros oficiais, Einar desapareceu e acabou dado como morto enquanto Lili nasceu com seus próprios documentos femininos, um avanço para a época, em contraste com o modo como Greta era vista). Leitura e filme obrigatórios nos dias de hoje, quando tanto se fala acerca das pessoas trans, de suas lutas por visibilidade e respeito. E SALVE, LILI ELBE, RAINHA ETERNA! <3
Minha classificação para esse filme é de ❤ 6/6- "Obra Prima".